Mentira, engano e falsas memórias: Uma perspetiva neurocientífica sobre a nossa sobrevivência



Enquanto especialista em neurociências, frequentemente deparo-me com uma peculiar ironia de como a nossa capacidade de mentir, enganar e criar falsas memórias pode ter sido crucial para a sobrevivência da nossa espécie, assim, esta afirmação, aparentemente contraditória, assenta em fundamentos neurobiológicos profundos que têm fascinado investigadores ao longo de décadas. 

O nosso cérebro, essa extraordinária máquina de processamento, não funciona como uma câmara de vídeo que regista fielmente cada momento, pelo contrário, é um narrador criativo que constantemente reconstrói e reinterpreta as nossas experiências, frequentemente introduzindo elementos que nunca existiram de facto.







A mentira, do ponto de vista evolutivo, representa uma capacidade cognitiva sofisticada que requer não apenas criatividade, mas também uma compreensão profunda da mente do outro - uma característica distintamente humana, logo, quando mentimos, ativamos regiões cerebrais complexas, incluindo o córtex pré-frontal, que está envolvido no planeamento e na tomada de decisões. Esta capacidade de criar realidades alternativas, por mais questionável que possa parecer do ponto de vista ético, proporcionou-nos vantagens adaptativas significativas ao longo da nossa evolução. Pensemos, por exemplo, na capacidade de um primata ancestral de enganar um predador sobre a localização do seu grupo, ou na habilidade de um humano primitivo em manter coesa uma comunidade através de narrativas partilhadas, mesmo que não inteiramente precisas.

As falsas memórias, por sua vez, representam um fenómeno ainda mais intrigante, desta forma, os estudos neurocientíficos demonstram que cada vez que recordamos um evento, não estamos a aceder a um arquivo original, mas sim a reconstruir ativamente essa memória, incorporando elementos do nosso presente e das nossas expectativas. Este processo, conhecido como reconsolidação, significa que vivemos em grande parte numa realidade construída pela nossa mente, onde as fronteiras entre o que realmente aconteceu e o que acreditamos ter acontecido são surpreendentemente ténues. Esta plasticidade da memória, embora possa parecer uma falha do sistema, é na verdade uma adaptação que nos permite manter uma narrativa coerente sobre quem somos, mesmo que essa narrativa seja parcialmente ficcional.

A questão torna-se ainda mais fascinante quando consideramos que as nossas decisões quotidianas, as nossas relações interpessoais e até mesmo a nossa identidade são profundamente influenciadas por estas memórias potencialmente imprecisas, estamos, assim, efetivamente, a viver vidas baseadas em recordações que podem não corresponder à realidade objetiva. No entanto, é precisamente esta capacidade de reescrever a nossa história, de criar narrativas adaptativas e de nos enganarmos ocasionalmente a nós próprios que nos permitiu desenvolver culturas complexas, estabelecer sociedades resilientes e sobreviver como espécie.

Como súmula, a persistência da humanidade pode dever-se não apenas à nossa capacidade de descobrir a verdade, mas também à nossa habilidade de a distorcer quando necessário, neste sentido, é um equilíbrio delicado entre realidade e ficção, verdade e adaptação, que continua a moldar a nossa existência coletiva. Como investigador, observo este fenómeno com um misto de fascínio científico e admiração filosófica, reconhecendo que a complexidade da mente humana reside não apenas na sua capacidade de compreender a verdade, mas também na sua habilidade de a transcender quando necessário. Afinal, : quem quer faz, quem não quer arranja desculpas.


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