A orientação vocacional é, muitas vezes, um teatro mal ensaiado. Entra-se numa sala, geralmente aos 15 ou 16 anos, com o peso do futuro nas costas e a leveza da adolescência ainda a pulsar. O orientador, armado com testes psicotécnicos desatualizados e uma lista de cursos que parecem saídos de um catálogo de fábrica, olha para o aluno e decide: “Este não é material de universidade. Curso profissional, então.” E assim, com a precisão de um carimbo burocrático, o destino de um, jovem, é selado.
Não é segredo que o sistema educativo português tem uma abordagem peculiar à orientação vocacional. Se és um aluno exemplar, com notas brilhantes, o céu é o limite: universidade, medicina, engenharia, o que quiseres. Mas se és um aluno mediano, desinteressado ou simplesmente perdido no turbilhão da adolescência, o caminho é outro. “Não te esforças? Não tens jeito para a escola? Há um curso profissional à tua espera.” Os cursos profissionais não são inferiores, pelo contrário, são uma oferta de sucesso e de futuro. O problema é a falta de escolha, a falta de verdadeira orientação. É a presunção de que um jovem que não brilha nos testes de matemática ou português não tem sonhos, talentos ou potencial para algo mais.
Conheci uma rapariga, a Ana, que aos 16 anos foi encaminhada para um curso de costura. Não porque quisesse, mas porque o seu boletim não impressionava. “Não te preocupes, isto é estável, há sempre trabalho”, disseram-lhe. Anos depois, já com o curso concluído, ela confessou-me que queria ser bióloga marinha, mas ninguém nunca lhe perguntou. Ninguém a ouviu. O sistema decidiu por ela, e ela aceitou, porque aos 16 anos, quem é que sabe lutar contra um carimbo?
Os testes vocacionais, que muitas escolas ainda usam, são um relicário dos anos 80. Perguntas genéricas, respostas múltiplas, como se a complexidade de um ser humano pudesse ser reduzida a um questionário. “Gostas de trabalhar com as mãos?” Sim? Curso profissional. Não? Talvez uma licenciatura, se as notas ajudarem. E se o aluno está desmotivado, se a vida em casa é um caos, se a escola não o inspira? Paciência. Há sempre um curso de eletricidade ou cabeleireiro à espera. Não me interpretem mal: não há desonra nestas profissões. Há desonra, sim, em presumir que um jovem sem brilho académico não tem uma vocação própria, uma faísca que ninguém se deu ao trabalho de procurar.
O sistema português de orientação vocacional não orienta; encaixa. É uma linha de montagem onde os menos “aptos” são empurrados para o lado, como peças defeituosas. Faltam psicólogos nas escolas, faltam conversas genuínas, faltam profissionais que saibam ler além das notas e dos testes. Faltam adultos que se lembrem de como é ser jovem, cheio de dúvidas, medos e sonhos mal articulados. Em vez disso, temos um sistema que rotula e despacha, que confunde desinteresse com incapacidade, que ignora que a motivação de um adolescente pode ser moldada com paciência e atenção.
E os números não mentem. Segundo dados recentes, cerca de 30% dos jovens portugueses abandonam os cursos profissionais antes de os concluir. Será que todos eles são “desistentes” por natureza? Ou será que foram colocados em caminhos que nunca sentiram como seus? A orientação vocacional deveria ser uma bússola, não uma corrente. Deveria ajudar a descobrir paixões, não a apagar possibilidades. Mas em Portugal, muitas vezes, é apenas uma forma de manter a máquina a funcionar: os bons para a universidade, os outros para o trabalho, e que ninguém questione o processo.
A Ana, hoje, trabalha numa loja de roupa. Não é costureira, mas também não é bióloga marinha. Ainda sonha com o mar, mas já não acredita que o sistema a vá ajudar a lá chegar. E quantas Anas há por aí, presas em escolhas que nunca foram suas? A orientação vocacional em Portugal precisa de um abanão. Precisa de coração, de tempo, de ouvidos atentos. Porque os jovens merecem mais do que um carimbo. Merecem ser vistos.
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