Ah, muitos de vós, lembra-se como fosse ontem, embora tenham passado quarenta anos exatos. Era 2 de setembro de 1985, um dia que marcou o início de algo que, na altura, parecia o prenúncio do caos. Ali, em Lisboa e no Porto, instalaram as primeiras doze caixas automáticas do Multibanco, essas máquinas frias, impessoais, que prometiam acesso ao dinheiro a qualquer hora, sem precisar de um sorriso atrás do balcão. Onde é que já se viu um banco aberto vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano? Era o que toda a gente murmurava, indignada, nos cafés, nas filas do pão, nas conversas de família. "Isto é o fim da banca tal como a conhecemos!", gritavam uns. "E o fim do mundo, já agora!", ecoavam outros, com aquele tom apocalíptico que só os portugueses sabem dar às mudanças.
Naqueles anos oitenta, Portugal
ainda lambia as feridas da crise económica que nos tinha atingido em cheio
entre 1983 e 1985 uma recessão brutal, com inflação galopante, desemprego a
subir como uma maré alta, e o FMI a bater à porta com as suas receitas amargas
de austeridade. Lembram-se? Os preços disparavam, as fábricas fechavam, e as
famílias contavam os tostões para o fim do mês. No meio disto tudo, surge o
Multibanco, e o povo via nele mais uma ameaça: empregos perdidos para sempre.
Os empregados bancários, aqueles senhores e senhoras de gravata e saia plissada
que nos atendiam com paciência (ou nem sempre), iam ficar na rua?
"Máquinas a roubar o trabalho aos humanos!", protestavam os
sindicatos. E não era só isso, havia o medo da insegurança, de ladrões a
espreitar nas sombras das ruas mal iluminadas, ou pior, de falhas técnicas que
engolissem o cartão e o ordenado inteiro. Inspirados em crises passadas, como a
do petróleo nos anos setenta que nos deixou às escuras e sem combustível, ou a
revolução tecnológica que já devorava postos nas indústrias têxteis e nas
linhas de montagem, as pessoas imaginavam cenários dantescos: bancos vazios,
ruas desertas de agências, uma sociedade onde o toque humano se evaporava como
orvalho ao sol. "É o apocalipse da confiança!", lia-se nos jornais,
entre linhas de receio e caricaturas de robots com olhos vermelhos.
E no entanto, aqui estamos,
quarenta anos depois, e o Multibanco é como o ar que respiramos, indispensável,
invisível na sua utilidade. Quem é que hoje imagina a vida sem ele? Um
levantamento rápido à meia-noite, um pagamento no supermercado sem moedas
tilintantes, um saldo consultado num piscar de olhos. Salvou-nos tempo,
facilitou o dia a dia, tornou-nos mais livres. Não acabou com a banca; pelo
contrário, reinventou-a, criou novos empregos em tecnologia e suporte, e até
aumentou o número de balcões em alguns lugares, porque as máquinas libertaram
as pessoas para tarefas mais complexas, mais humanas.
Penso nisto tudo e não consigo
evitar o paralelo com a Inteligência Artificial, essa sombra que paira sobre
nós agora, em 2025. As pessoas tremem ao ouvi-la: "Vai roubar-nos os
empregos, destruir a criatividade, talvez até a humanidade inteira!"
Gritam os alarmistas, ecoando medos antigos de filmes distópicos e relatórios
sombrios. É uma ameaça, dizem, como se fosse um monstro saído de um
laboratório, pronto para nos substituir em escritórios, fábricas, até nas
artes. Mas será? Olho para trás, para aquele setembro de 85, e pergunto-me: e
se a IA for o nosso próximo Multibanco? Daqui a quarenta anos, talvez estejamos
a rir-nos destes temores, enquanto ela nos ajuda a curar doenças, a criar
mundos novos, a resolver enigmas que nos atormentam. Talvez se torne essa
ferramenta quotidiana, indispensável à nossa sobrevivência, não como predadora,
mas como aliada, ampliando o que de melhor há em nós.
A vida, afinal, é assim: cheia de
inícios assustadores que se transformam em amores inevitáveis. E nós,
portugueses resilientes, sempre soubemos dançar com o desconhecido,
transformando o medo em progresso. Quem diria, hein?
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